No dia 30.07, acontecerá o lançamento do meu primeiro livro de contos. Divulgo aqui o convite do evento, a quem se interessar, seguido do prefácio e trechos de contos que compõem o livro.
Cada vez mais,
contesta-se a legitimidade de uma sociedade prioritariamente calcada em um projeto
que é ocidental, branco, cristão e heterossexual. Novos modelos de
relacionamento, outras formas de convivência com o próprio corpo e com os
demais, o conhecimento e reconhecimento de alteridades diversas, que fogem ao
senso comum, são a tônica de um momento histórico cada vez mais globalizado e
interligado pelas redes sociais, disseminadoras de conteúdos que trafegam em
uma velocidade e com uma liberdade cada vez maior. Mas essas transformações
também provocam fissuras, indivíduos que, embora percebam cada vez mais as
mudanças e queiram inserir-se nelas, não conseguem, por ainda se encontrarem
presos a padrões antigos, preconceitos, medos e culpas. Os contos de Thiago
Dias aqui publicados permitem que nos debrucemos sobre esses sujeitos
problemáticos de forma tortuosa e violenta.
O autor não deixa dúvidas
quanto à temática de preferência: são histórias em que o homoerotismo dá o tom,
nas quais não há pudor em relatar as experiências sexuais, em deixar bem
visível o “pau duro” do personagem sob a calça, o tesão de um “inofensivo” velho
que apenas observa a beleza juvenil, o cu que abre e fecha de prazer. Mas
também são contos em que se conjuga, de modo às vezes cruel, a violência com
que esse prazer se manifesta nos indivíduos que o sentem e com os quais tem
contato: é o perigoso cacto espinhoso comparado a um pênis ereto, a camisinha
estourada com restos cristalizados de sêmen, a mancha de sangue no lençol após
o ato sexual.
E é uma violência que se
manifesta justamente por conta de uma sensação de não pertencimento de um
indivíduo formatado pelos preconceitos vigentes que ditam o que seria o “padrão”
de nossa sociedade em relação aos novos grupos que se impõem em relação o status quo, em particular contra um
projeto de heteronormatividade que pauta o comportamento social e sexual
masculino. Isso fica bastante evidente em um conto como “Orlando”, em que o
narrador acompanha a transformação do amigo, quase como um voyeur que, ao mesmo
tempo, regozija-se e culpa-se com a violência sofrida por ele durante o
processo. O amigo apanha porque se veste e rebola como mulher, não faz jus as
calças que veste, como o narrador que, encarnando o tipo “gay enrustido”, sente
falta das “punhetas” que batia com o colega durante a adolescência e, já na
faculdade e fora do lar de seus pais, mantém uma relação homossexual às
escondidas.
Trata-se de um comportamento
heteronormativo similar ao do narrador de “Ménage à trois”, no qual se
evidencia a busca pelo prazer desconectado de qualquer tipo de afetividade com
indivíduos do mesmo sexo, desde que não se perca a condição de “macho alfa”,
que obviamente prefere a posição de ativo, vangloria-se do próprio pau e relata
ao amigo, de modo muitas vezes grotesco, entre uma cerveja e outra, as suas
experiências na cama.
A dor gerada por esses
encontros prazerosos e violentos, no entanto, também funcionam como momentos de
descoberta. É a sensação de bliss
que, para o narrador, aponta para a possibilidade de negação dos padrões
estabelecidos e, finalmente, a aceitação da sexualidade por parte do indivíduo.
O excesso de luz que faz o narrador do primeiro conto dessa coletânea imaginar
que ficaria cego ou as nesgas de luminosidade que o personagem de “O espinho”
tenta inutilmente agarrar, e que apontam para o borrão de sangue no lençol,
funcionam como elementos, quase religiosos, de reconhecimento e de aceitação,
como visões místicas que direcionam a uma possibilidade de libertação do
sujeito problemático.
Mas é em “Parada” que o
vislumbre dessa libertação parece mostrar-se mais próximo. Nessa narrativa, a
própria linguagem esforça-se em “sair do armário” e a escrita tenta
aproximar-se de uma semântica que insira o sujeito no grupo a que tanto ele
almeja pertencer. É o “boy” que dá a
Elza na “bicha burra”, que veio para a parada com a carteira cheia de dinheiro,
a drag que “ahaza” sobre o trio
elétrico, “a gay” que enlouquece com a
“neca mara” do bofe com quem transou em plena rua. Aqui, o autor coloca de lado
recursos narrativos tradicionais, mas condizentes com os perturbados meandros
psicológicos dos narradores anteriores, para mergulhar em uma sintaxe e um
léxico próprios, que favoreça o processo de identificação do indivíduo em
relação ao grupo. Como o movimento da própria parada, a perspectiva dá-nos a
sensação de que desfila junto à massa, recaindo sobre tipos, perscrutando seus
pensamentos, evidenciando a diferença.
Nesse momento, Thiago
Dias mostra que linguagem e ideologia não podem atuar separadamente. É o
dêitico, o apontar na direção do outro, o modo de nos afastarmos ou nos
aproximarmos da alteridade ou de nós mesmos. A travesti ou transsexual é “ela”,
não “ele”. Ou também vestimos a luva do
outro, que nos cabe muito bem, ou nos tornamos um indivíduo em constante e
dolorosa luta interior, como o do conto “Um velho obsceno”, uma narrativa
extremamente cruel e incômoda, que já parece ter nascido como clássico instantâneo.
Marcos
Lemos Ferreira dos Santos
Mestre
em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP)
O cego
As notas caíam lentas
como gotas de chuva sobre nossas cabeças, eu e o homem cego ao meu lado,
enquanto observávamos do lado de fora o pianista tocar no restaurante, sem nos
importarmos se ficaríamos molhados. De qualquer forma, era a sensação que eu
então estava sentindo, e me lembro bem de que, quando olhei para o céu e
percebi que ele era de um profundo azul no final daquela tarde, tive vontade de
me sentar na beira da calçada e chorar com ele ao meu lado.
“Fecha os olhos”, ele
disse de repente.
E eu imediatamente
fechei.
“Sabe quando você fecha
os olhos pra ouvir alguma música já conhecida e de repente você percebe vários
detalhes que até chega a pensar que não conhecia de verdade?”, ele perguntou,
mas eu agora estava atento à voz suave e poderosa que parecia vir de algum
lugar muito profundo e distante, que eu não podia alcançar.
Continuamos caminhando
pela rua, a mesma rua por que eu passava todos os dias, com seus prédios,
letreiros brilhantes e coloridos piscando incansavelmente por toda a noite,
anúncios como “Amarração para o amor” nos postes, outdoors anunciando mais um
fenômeno para fazer os outros suspirarem como a mulher do metrô. E olhei para
ele, a pele morena dourada sob as luzes que lentamente se acendiam nos postes
da rua, sereno e alheio a tudo aquilo ao seu redor, atento apenas aos muitos –
infinitos, na verdade – tons e verdades por trás de todas as aparências. E
quando ele parou diante da entrada de um prédio, indicando que era ali que ele
morava, mal terminou de formular se eu não gostaria de– lembro que me enganchei
em um braço seu para que me levasse com ele, pois eu desejava que me visse.
Parada
Como dois
maestros em cima do trio que regia toda a parada, ela via a si mesma e o
GogoBoy ao seu lado, o néctar escorrendo do corpo dele, trazendo a promessa da
imortalidade para quem o provasse – Ganimedes raptado pelos deuses para o
Olimpo. Pois ela mesma era a própria deusa Afrodite, aqui, em cima do trio,
guardiã daqueles sob a bandeira que se estendia pela avenida, sedentos para
experimentar a carne do banquete (ela não viu quando a carteira passou rápida
por trás da sua cabeça). Ou talvez, imensa e colorida, os cabelos azuis
revoltos e a boca enorme, fosse como um dragão a soltar fogo. Pois assim
mítica, lendária, estava além de qualquer classificação de gênero ou espécie –
criatura do exagero e das cores. É tanto poder e exuberância que fascinam.
Balançou
os cabelos azuis ao som que vinha do carro, desfilando imponente. Ventava
forte; mas ela estava ali, não estava? Ainda que nem todos a observassem, apesar
de estar no centro, ela fazia a sua performance exatamente para isso, sentiu,
enquanto levantava os braços regendo a música que vinha do trio – embora não
estivesse tão certa quanto ao que isso era. Talvez tenha
gritado, agora, sua voz reverberando da caixa de som – pois era a sua voz
– e num rompante debruçou-se sobre as barras ao redor do carro, enquanto
percorria com o olhar à distância o arco-íris que parecia irradiar de si mesma
ondulando ao vento... E não viu – um homem alto, ele era bonito, olhava-a
sorrindo com um cigarro queimando pendendo do canto dos lábios – seus cabelos
alçarem voo...
O espinho
Mas sabe aquela sensação
de que tem alguma coisa dentro de você, que todo mundo vê, sabe muito bem o que
é, mas só você não sabe? Na verdade, acho que ninguém via nada. Pelo menos, não
mais do que eu. Foi uma fase muito difícil... Era como olhar no espelho e
enxergar seus lábios se separando, a boca se abrindo sozinha, e você não
entendia, e se afastava assustado... Como se as palavras estivessem sempre na
iminência de se formar e, se eu falasse, seria tarde demais. Não haveria
retorno. E eu nem sabia que palavras eram essas! E até hoje não sei. Por isso,
acho que na verdade elas simplesmente não existem. O mais próximo que alguém
pode chegar perto delas é dizendo Eu sou, e só. Mas dizer isso, olhando o
próprio reflexo no espelho, pele, olhos e cabelo – é redundante demais. E a
gente acaba com ainda mais dúvidas. Acho que todo mundo vive passando por isso
na vida. Só falei de “armário”, “modelos”, porque, apesar de tudo, eu ainda sou
gay.
Desculpa, você tinha me
perguntado como foi minha primeira vez, né?
Eu tinha resolvido sair
sozinho naquele dia. Foi algo bem impulsivo... Eu sempre saía com meus amigos,
odiava sair sozinho. Não me sentia bem, sei lá. Mas todos eles eram héteros, e
acho até que não sabiam que eu era gay, mesmo sempre me provocando com algumas
piadinhas. Eu era aquele cara, daquele comercial argentino de cerveja, acho,
sabe? E eu fingia levar tudo na brincadeira, mesmo já sentindo um pé no outro
lado, também. Bom, naquele dia eu resolvi dar o outro passo. Pôr finalmente
meus dois pés no lugar que era meu.